Regime excecional para as situações de mora no pagamento de rendas - COVID-19

Ivan Ferreira, Advogado e Membro do Consórcio Archer & Associados analisa o regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, no âmbito da pandemia COVID-19, de acordo com a Lei n.º4-C/2020 de 6 de Abril.

Neste artigo pretende-se responder a algumas das questões pertinentes neste regime excecional.

Foi publicada em Diário da República a Lei n.º 4-C/2020 de 6 de Abril, que estabeleceu um regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos dos contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, atendendo à grave situação epidemiológica provocada pela doença COVID-19.

Objetivando uma melhor integração de contexto, em primeiro lugar, cumpre dizer que nos termos da lei geral, as obrigações dos locatários no que respeita ao pagamento da renda encontram-se elencadas nos artigos 1039º a 1042º do Código Civil.

Em termos gerais, o pagamento da renda ou aluguer deve ser efetuado no último dia de vigência do contrato ou do período a que respeita, e no domicílio do locatário à data do vencimento, se as partes ou os usos não fixarem outro regime.

O artigo 1041º, número 1 do Código Civil, estipula que “Constituindo-se o locatário em mora, o locador tem o direito de exigir, além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização igual a 20 /prct. do que for devido”. Estatui o número 2 que “Cessa o direito à indemnização ou à resolução do contrato, se o locatário fizer cessar a mora no prazo de oito dias a contar do seu começo”.

O número 3 do artigo 1041º do Código Civil determina que “Enquanto não forem cumpridas as obrigações a que o n.º 1 se refere, o locador tem o direito de recusar o recebimento das rendas ou alugueres seguintes, os quais são considerados em dívida para todos os efeitos”.

Dispõe, ainda, o artigo 1042º número 1 do Código Civil que “O locatário pode pôr fim à mora oferecendo ao locador o pagamento das rendas ou alugueres em atraso, com o acréscimo da indemnização de 20/prct.

Ora, nos termos da lei geral e dos usos, o locatário efetua o pagamento da renda até ao dia oito de cada mês, referente ao mês subsequente.

Vejamos agora, os efeitos práticos do regime da Lei nº4-C/2020 de 6 de Abril que, sendo excecional, sobrepõe-se à referida lei geral, no hiato temporal da sua vigência, em concreto, a partir de 7 de Abril de 2020, com produção de efeitos que retroagem às rendas que se vençam a partir do dia 1 de Abril, enquanto vigorar o estado de emergência e no primeiro mês subsequente ao seu término.

Este regime excecional abrange os contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional e também outras formas de exploração de imóveis como por exemplo a Cessão de Exploração.

Para os contratos de arrendamento habitacional, destina-se quer aos arrendatários quer a senhorios, sendo que no caso do arrendamento não habitacional visa apenas os arrendatários.

Quanto aos requisitos da sua aplicabilidade, também variam em função de tratar de arrendamento habitacional (artigo 3º) ou não habitacional (artigo 7º).

No caso do arrendamento habitacional,
Para os arrendatários é necessária uma quebra superior a 20% dos rendimentos do agregado familiar face aos rendimentos do mês anterior ou do período homólogo do ano transato e que a taxa de esforço do agregado familiar, calculada em percentagem dos rendimentos de todos os membros seja ou se torne superior a 35%.

Para os senhorios, quebra superior a 20% dos rendimentos do agregado familiar face aos rendimentos do mês anterior ou período homólogo do ano transato e a percentagem de quebra dos rendimentos tem que ser provocada pela não pagamento de rendas pelos arrendatários ao abrigo do disposto neste diploma.
Cumpre notar que os requisitos acima elencados são cumulativos.

Diga-se que, a demonstração da quebra de rendimentos, no presente, não tem aplicação imediata visto será efetuada nos termos a definir por portaria a aprovar pelo membro do Governo responsável pela área da habitação, tal como determina o nº 2 do artigo 3º da lei nº4-C/2020 de 06 de Abril.

Assim, o senhorio só terá direito à resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas vencidas nos meses em que vigorar o estado de emergência e no primeiro mês subsequente, se o arrendatário não efetuar o seu pagamento nos 12 meses seguintes ao termo desse período, em prestações mensais não inferiores a um duodécimo do montante total, pagas juntamente com a renda de cada mês.

Ou seja, o arrendatário tem que pagar nos 12 meses seguintes ao termo do estado de emergência o valor das rendas vencidas durante aquele período, impedindo assim o senhorio resolver o contrato com fundamento no não pagamento de rendas, previsto no artigo 1083º, nº3 do Código Civil.

Para beneficiarem da elencada possibilidade de pagamento faseada no tempo, impedem sobre os arrendatários os deveres de informação consagrados no artigo 6º da citada lei, designadamente, comunicar, por escrito, ao senhorio, até cinco dias antes do vencimento da primeira renda em que pretendem beneficiar deste regime, sendo que no caso da renda vencida em 1 de Abril, podem fazê-lo até 27 de Abril.
Sublinha-se que essa comunicação deverá ser acompanhada da documentação que vier a ser exigida pela portaria a aprovar pelo membro do Governo responsável pela área da habitação que, como acima já disse, ainda não existe, consubstanciando que, no presente, não se sabe quais os documentos que serão exigidos.

Entendemos, por isso, que nesta fase, deve ser efetuada ao senhorio a comunicação da intenção e depois, aquando da aprovação da portaria, enviar os documentos.

Ao invés do pagamento prestacional, os arrendatários habitacionais e no caso dos estudantes que não aufiram rendimentos do trabalho, os fiadores, podem optar por requerer um apoio financeiro ao Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I.P. (IHRU, I.P.).

O apoio financeiro será concretizado na forma de um empréstimo, sem juros, calculado pela diferença entre o valor da renda mensal devida e o valor resultante da taxa de esforço máxima de 35%, de forma a permitir o pagamento da renda devida, não podendo o rendimento disponível restante do agregado familiar ser inferior ao Indexante dos Apoios Sociais (IAS) que para o corrente ano de 2020 foi fixado em 438,81 euros.

Os senhorios também podem optar por solicitar ao IHRU,I.P., o apoio financeiro e aqui o empréstimo, também sem juros, será calculado para compensar o valor da renda mensal devida e não paga pelos arrendatários, sempre que o rendimento disponível restante do agregado familiar desça, por tal razão abaixo do IAS (438,81 euros).

O IHRU, I.P., para a concessão dos empréstimos, vai financiar-se através dos valores destinados ao Instituto, previstos no orçamento de estado para 2020.

No caso do arrendamento não habitacional,

Destina-se apenas a arrendatários.
São beneficiários os estabelecimentos abertos ao público destinados a atividades de comércio a retalho e de prestação de serviços encerrados ou que tenham as respetivas atividades suspensas em consequência da execução do estado de emergência.

Ainda, aos estabelecimentos de restauração e similares, incluindo nos casos em que estes mantenham atividade para efeitos exclusivos de confeção destinada a consumo fora do estabelecimento ou entrega no domicílio, nos termos previstos no Decreto n.º 2 -A/2020, de 20 de março, ou em qualquer outra disposição que o permita.

O beneficio concedido aos arrendatários traduz-se no diferimento do pagamento das rendas vencidas nos meses em que vigore o estado de emergência e no primeiro mês subsequente, para os 12 meses posteriores ao término desse período, em prestações mensais não inferiores a um duodécimo do montante total, pagas juntamente com a renda do mês em causa.

A falta de pagamento das rendas que se vençam nos meses em que vigore o estado de emergência e no primeiro mês subsequente, nos termos do artigo anterior, não pode ser invocada como fundamento de resolução, denúncia ou outra forma de extinção de contratos, nem como fundamento de obrigação de desocupação de imóveis.

O senhorio, fica também impossibilitado de exigir quanto a estas rendas o pagamento de quaisquer outras penalidades que tenham por base a mora no pagamento.

Deste regime, resulta cristalino que nos casos em que os arrendatários habitacionais comuniquem a intenção de lançar mão do pagamento prestacional e os arrendatários não habitacionais usarem da prerrogativa do diferimento, os senhorios passam a não poder exigir a indemnização de 20/prct , prevista no n.º 1 do artigo 1041.º do Código Civil, por atraso no pagamento de rendas que se vençam nos meses em que vigore o estado de emergência e no primeiro mês subsequente.

Aos senhorios fica também vedada a possibilidade de recusar o recebimento das rendas ou alugueres seguintes.

De certa forma, este regime excecional, relembra o vinculismo presente nos contratos de arrendamento mais antigos, uma vez que positiva um conjunto de normas e regras por forma a proteger os arrendatários, mas é com certeza uma proteção de muito maior amplitude já que o normativo, também, salvaguarda, os senhorios.

Em conclusão, é facto que a Lei nº4-C/2020 de 06 de Abril, por se tratar de regime excecional, sobrepõe-se à lei geral, colocando-se, em abstrato, a hipótese de ferir o principio da autonomia privada concretizado na liberdade contratual, mas não concedemos essa lesão, uma vez que na situação pandémica grave e extraordinária em que Portugal se encontra, entendemos como equilibrada e harmonizada a alteração excecional dos direitos e obrigações quer de arrendatários quer de senhorios.

Ivan Ferreira
Advogado
Membro da Archer & Associados – Consórcio de Advogados, RL